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Muita arte na rede Ello:
domingo, 10 de abril de 2011
Blaise Cendrars, em tradução de José Machado Sobrinho
Blaise Cendrars
ÁGUAS DE PORTUGAL
Sur les Côtes du Portugal
Do Havre optamos por seguir a rota dos antigos navegantes
Espaçosamente o mar de Portugal é coberto de barcos e pesqueiros
É de um azul contínuo e de pelágica transparência
O tempo é claro e quente
Estala o sol de cheio
Inumeráveis algas verdes microscópicas vêm à tona
Produzem alimentos que lhes facilitam uma imediata proliferação
São inexaurível sustento para a legião de infusórios e as delicadas larvas marinhas
Animais de toda espécie
Vermes estrelas e ouriços-do-mar
Crustáceos miúdos
Mundinho efervescente à superfície das águas de escancarada claridade
Gulosos e esganados
Chegam os arenques as sardinhas as cavalas
Atrás deles tainhas atuns bonitos
A que sucedem os cações marsuínos e delfins
O tempo é claro a pesca propícia
Quando o tempo se nubla os pescadores ficam mal-humorados e fazem chegar seu protesto até a tribuna do parlamento
A BORDO DO FORMOSA
À bord du Formose
Céu sinistro estriado de faixas leprosas
Água turva
Estrelas graúdas se desmancham como círios chorosos
A bordo é o seguinte
No castelo de popa quatro russos se alojaram sobre um rolo de cordames e jogam baralho à luz de uma lanterna veneziana
Abaixo judeus em minoria como entre eles na polônia se empinhocam e dão passagem aos espanhóis que tocam bandolins cantam e dançam a jota
Na torre emigrantes portugueses dançam o arromba um negro bate duas compridas castanholas de osso e os pares saem da roda avançam e retornam batendo o calcanhar enquanto uma estridente voz de mulher soa
Os passageiros da primeira classe assistindo a quase tudo desprestigiam esses folguedos
Ao salão um nojo uma alemã sebosa toca um violino e dodói um cu uma francesinha a acompanha ao piano
Ao corredor do convés um russo misterioso oficial da guarda grão-duque incógnito personagem à la Dostoievski que eu apelidei de Dobro-vétcher vai e vem é um menino infeliz esta noite e afeta um nervosismo calçou escarpins envernizados um traje meio basco e um chapelão-coco igual meu pai numa foto em 1895
No fumoir jogam dominó um jovem médico que se assemelha a Jules Romains e rala no alto Sudão um armeiro belga que descerá em Pernambuco um holandês a testa fendida em dois hemisférios por uma cicatriz profunda ele é diretor do Montepio de Santiago do Chile e uma sirigaita de Ménilmontant povinho malandro chegado a trambiques de carro ela me oferece até uma mina de chumbo no Brasil e um poço de petróleo em Baku
Na torre posterior os emigrantes alemães muito asseados e severamente penteados cantam com suas mulheres e filhos graves cânticos e canções sentimentais
No segundo convés discute-se muito e se pragueja em todas as línguas do Leste europeu
Na despensa os bordaleses carteiam a manilha e em seu posto o operador do TSF xinga regado a Santander e a um bom Mogador
GORÉE
Gorée
Um castelo forte mediterrâneo
E atrás uma ilhota plana ruínas portuguesas e bangalôs de um amarelo muito comum nas passarelas de moda de outono
Neste antigo esconderijo de negreiros só moram funcionários coloniais que não se animam a mudar para Dakar onde como em todo lugar aflige a crise dos aluguéis
Visitei as antigas masmorras cravadas na rocha basaltina onde até hoje são vistas correntes e grilhetas que prendiam os escravos
Árias de gramofone precipitavam profundeza abaixo
BUBUS
Les Boubous
Oh estas negras misturadas aos traficantes que a gente encontra perto da aldeia a manusear o percal do tráfico
Mulher nenhuma no mundo tem esta distinção nobreza este andar este dengo este porte esta elegância esta manemolência este requinte esta limpeza este asseio esta saúde este otimismo esta inconsciência esta juventude este capricho
Nem a inglesa aristocrata no Hydepark cedo
Nem a espanhola passeando domingo à tarde
Nem a bela romana do Pincio
Nem as mais singelas camponesas da Hungria ou da Armênia
Nem a sofisticada princesa russa outrora em seu trenó no cais de Neva
Nem a chinesa numa gôndola de flores
Nem as sexy datilógrafas de Nova York
Nem a mais parisiense de todas as parisienses
Permita Deus que pela minha vida afora algumas daquelas imagens entrevistas povoem meu pensamento
Cada mecha de seus cabelos é uma pequena trança de tamanho igual untado penteado e lustroso
No alto da cabeça elas trazem um adorno de couro ou marfim preso por fios de seda multicor ou por coroinhas de pérolas vivas
Este penteado implica horas e horas de trabalho que elas passam a vida a fazer e refazer
Um brinco de moedinhas de ouro fura a cartilagem das orelhas
Algumas têm uns riscos coloridos no rosto sob os olhos no pescoço e todas se maquiam com uma arte fabulosa
Suas mãos são repletas de anéis pulseiras braceletes com todas as unhas pintadas e igualmente a palma da mão
Uma rude armila de prata soa em seus tornozelos e os dedos dos pés também carregam anéis
O calcanhar é pintado de azul
Elas usam bubus de diversos tamanhos vestindo uns por cima dos outros confeccionados de cor e bordados variados elas chegam a estampar um conjunto incrível de bom gosto onde o laranja o azul o ouro o branco predominam
Usam também cintos e grandes figas
Outros diversos turbantes celestes
O seu bem mais precioso são os dentes impecáveis que elas mantém conforme se conservam os metais de um iate de luxo
O seu gingar sestroso confunde assim com um veleiro
Nada porém pode exprimir o requebro e a malícia intencional do flexível molejo dessas cinturas
MICTÓRIO
Mictorio
O mictório é o W.C. da estação
Examino sempre com curiosidade este lugar quando visito um novo país
Estes lugares da estação de Santos são um cubículo onde uma baita gamela que me lembra as grandes talhas nas vinhas de Provença onde uma baita terrina até o pescoço está enterrada no chão
Uma grossa rodela de madeira preta larga e espessa acompanhando as beiras serve de assento
Isso deve ser bem desconfortável e muito baixo
É exatamente o oposto dos tinotes da Bastilha que ficam empoleirados no alto
MÁ FÉ
Mauvaise Foi
Este bendito mordomo a quem apesar de tudo dei uma gorda gorjeta pra não deixar ninguém me amolar
A convite do comandante vem me procurar com seu ar de gato bandido
Me solicita que eu ocupe um lugar de honra à mesa
Fico p. da vida mas não posso recusar
Ao jantar sinto que o comandante é um homem bem simpático
Me instalo entre o adido da embaixada em Haia e um cônsul inglês em Estocolmo
Doutro lado há um sumidade mundial em bacteriologia e sua doce esposa esganada e branquela de olhos mates e redondos
Meus paradoxos antimusicais e teorias culinárias sacodem a mesa numa indignação geral
O adido em Haia precipita seu monóculo na sopa
O cônsul em Estocolmo se desfigura em verde-congestão como um pijama listrado
O sumidade bacteriológica espicha ainda sua pontuda cabeça de furão
Sua esposa matraca e retrai de fora pra dentro tão bem que sua cara acaba por parecer um umbigo de boneco de mola
O comandante pisca maliciosamente
REVELAÇÃO
Incognito Devoilé
Já fazia dias que eu intrigava meus parceiros de mesa
Eles tentavam adivinhar o que eu era
Eu falava de bacteriologia com o sumidade mundial
De mulheres e cabarés com o comandante
Teorias kantianas da paz com o adido em Haia
Negócios de fretes com o cônsul inglês
Paris cinema música banco vitalismo aviação
Esta noite ao cumprimentá-la a mulher do sumidade mundial disse É verdade
O senhor é poeta
Com a breca!
Quem lhe contou foi a mulher do jóquei que viaja de segunda classe
Não lhe pude contrariar pois seu sorriso em forma de umbigo comilão me diverte mais que tudo no mundo
Eu queria muito saber como ela consegue franzir um rosto glutão e bochechudo
AMAS-SECAS E ESPORTES
Nourrices et Sports
Há diversas amas-secas a bordo
Secas e não tão secas assim
Quando se joga malha ao convés
Cada vez que a jovem alemã se debruça ao fundo do corpete saltam dois seiozinhos sapecas
Todos os homens da primeira classe aos matalotes conhecem este jogo e passam a bombordo pelo convés pra apreciar estas duas coisinhas redondas no ninho
Deve-se comentar isto até na despensa
Na ponta de um banco
Num cantinho isolado
Uma criança de peito se dependura e chucha a esguichar o grande seio de uma negra abundante e gomoso como uma penca de bananas
Tradução de José Machaddo Sobrinho
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