e
se alguém o pano, um livro de poemas que valem ser pensados e repensados
Detesto quando um crítico-ensaísta faz o mero
elogio/descarte de um poeta ou, melhor dizendo, de um texto poético. Mas isto
já é falar do meu gosto. Jamais assim devo fazer. Condenaria aquele que, ao
comentar um livro de poemas rarefeitos, se pusesse a defender as suas
qualidades argumentando sem argumentar solidamente. Antes este escrevesse loas.
Não farei nem um nem outro ao falar da aventura radical de
“e se alguém o pano” de Eliane Marques, poeta que, ao que sei, está em seu
segundo livro – e o primeiro, eu desconheceria, o que não permite fazer uma
análise mais completa de sua obra.
No entanto, a simples leitura de “e se alguém o pano” nos
permite observar a existência ali de um incipiente porém instigante e
entusiasmador experimentalismo. Nos parece a obra, em grande extensão, uma
colcha de retalhos “inteligentes” ou, melhor dizendo, “cultos”, no sentido de
cultura anterior ao antropológico que está em voga. A Eliane Marques fica
evidente que não “faltaria cultura pra cuspir nesta estrutura”, parafraseando
Raul Seixas.
Talvez, “cuspir nesta estrutura” fosse a intenção oculta da
sua poesia (de e se alguém...) porém,
esta permanecerá muito oculta para a maior parte dos leitores bem informados,
aqueles que eu diria terem um alto grau de “alfabetização funcional poética”.
Isso se dará, provavelmente, por uma série de motivos que ainda não sei se
posso compreender e explicar. Sendo, no entanto, um livro que vale a pena ser
pensado e repensado (e que faz pensar, nos enche de indagações) aqui estamos
nós.
À primeira vista, pareceria uma obra que tende para a
estética dadaísta, o que poderia ser reforçado pelas palavras da própria autora
quando informou no lançamento oficial da obra que, quando inclui palavras de
línguas africanas pouco conhecidas , por exemplo, não pretende produzir um poema que seja
decodificável em termos interpretativos, dito em outras palavras. Em outros
momentos, no entanto, oscila um tanto para a estética surrealista, fazendo uso
de algumas imagens que retratam o absurdo.
Os motivos que tornam mais difícil a decodificação dos
poemas, no entanto, não são apenas os que derivam ou, mais provavelmente, coincidem
com estes dois velhos “ismos” que já deveriam ser bem conhecidos e
compreendidos por todos os aspirantes a crítico e, quiçá, a poeta. As imagens absurdas, por exemplo, não derivam
de um mundo onírico.
A experiência vivida que produz os poemas do livro é muito
pessoal e, talvez, intransferível, o que aumentaria a opacidade do texto,
afirmação em que nos servimos de um conceito poundiano de que é necessário um
mínimo de experiência compartilhada entre o autor e o leitor para a interação
ser possível. Note-se que esta barreira é atenuada se considerarmos como
experiência vivida a leitura histórica que percebe-se de viés nos poemas do
livro, manifestas em escolhas linguísticas e nas imagens do inconsciente.
Pode-se, caso seus preconceitos não o impeçam, mesmo que
você não capte ou compreenda nada dos poemas, perceber ao menos o valor das referências
históricas do livro (por vezes contextualizadas no interior da história literária). Quanto às similaridades
estético-formais na história da literatura, já percebemos, de acordo com este
nosso raciocínio, que as coisas não são tão simples.
A provável coincidência formal com dadaísmo e surrealismo
já estão anotadas. Porém, a similaridade com as formas do movimento dadá não se
dá sempre de forma tão óbvia: em vez de usar sequências de sons sem sentido, a
poeta opta, por exemplo, por usar palavras que já possuam um significado (mesmo
que em outras línguas que não a portuguesa) mas que nos seus poemas tornam-se
puro significante sem sentido. Eliane Marques não tem a intenção de ser
“entendida”, não num sentido
convencional. Evidentemente, é de outra forma que entendemos um poema. Ouvimos,
enxergamos, tateamos. Depois vamos tentar achar um sentido para o todo.
Porém, na poesia de Eliane ainda não vamos achar este
sentido total: o texto não termina e nossa gestalt vai acendendo relâmpagos de
entendimento ao longo dele. Os significantes sem significado são entremeados
por muitas imagens (mesmo absurdas), registros linguísticos (que incluem
neologismos não evidentes nem “naturais”,
fáceis de se gerarem num coloquialismo dinâmico urbano) e alguns
recursos formais tradicionais da poesia que não vejo motivo para comentar em
uma poesia que aspira ao experimentalismo (a anáfora, por exemplo). Todos estes
recursos da poeta podem nos servir de estímulo para a difícil fruição na
leitura dos poemas. Selvagem e bruta, aparentemente, a poesia de Eliane parece
brotar de uma mente muito racional, que tem lá os seus meios de manter o seu
vínculo comunicativo, eximindo-se de ser meramente expressiva .
Outro recurso que dá uma aparência dadaísta (não usado
pelos dadás) mas que nos remete antes à poesia de e.e.cummings, à esparsa
poesia cubista, ao Pound dos “Cantares”, ao Eliot editado por Pound de “The
Waste Land”, às estruturas gramaticais
entrecortadas de “Grande Sertão Veredas”,
são o que eu chamaria numa abordagem linguística de “estruturas
abertas”. Estas são anunciadas desde o título do livro (e se alguém o pano, uma
estrutura gramatical inconclusa). De fato, estas “estruturas abertas” são
maioria talvez nos poemas do livro. Mais uma vez a gestalt do leitor é
convidada a agir, encontrando-se, porém, no beco sem saída de que estas
estruturas não parecem ter nenhuma possível omitida conclusão lógica, senão
juntando-as aos próximos retalhos linguísticos – esperança que pode ser
frustrada quando chegarmos a um termo no texto e não encontrarmos uma
conclusão. Neste caso, temos que passar ao próximo poema esperando melhor
resultado na leitura.
Para concluir, deixando pra trás uma
ampla gama de abordagens e muitas questões que talvez eu somente possa responder
satisfatoriamente em uma leitura de outra produção de Eliane – a qual espero
ansiosamente – já que trata-se de uma poesia muito instigante e, portanto, promissora,
e já que seu experimentalismo me parece estar ainda no princípio de uma longa
caminhada que poderá render muitos frutos.
Eliane Marques é poeta e editora e nasceu em Santana do Livramento, RS. |
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