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quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Poema de Ana Felícia Guedes Trindade, mais uma boa poeta que nunca publicou um livro.


Jean Lecomte du Nouy, L’Esclave blanche, 1888








                 











QUARENTA MARGARIDAS


 Amanheço mulher de quarenta primaveras e 
 quarenta invernos tambémde quarenta passarinhos e
 quarenta mil sóis nascepondo, qua de quatrocentos 
 amores e qua de quase tudo  alegria.
 
 Amanheço mulher de quarenta velinhas ede
 tantos e tantos e tantos bolos que comi agora
 fiquei doce.
 
Amanheço mulher de quarenta e quatro mil sonhos,
cheia de céus e nuvens brancas na cabeça e de 
leituras de mundo e de redes e de rugas e de águas
e toda florida e estampada qual frevo de carnaval.
 
Amanheço mulher de quarenta projetos divinos e
qua de quase toda arco-íris , qua de quase toda milharal ,
promessa de vida madura , qua de quase  laranja
alaranjada de umbigo e cheia de caldo doce de outono.
 
Amanheço mulher passageira de uma avenida
vida-ida-vinda-vida-ida-vinda-ida-vinda-advinda-vindaidaida-vida-vivida,
e fico ressuscivivida de tantas locomoções, lo-com-moções, lo-com-emoções.
Amanheço com quarenta rodas e quarenta trilhos e quarenta estradas.
Qua de quatro mil viagens e bagagens.Amanheço com  quarenta
veios d’água e qua de quase embarcação.Amanheço correnteza
levando flores de laranjeira .
 
 
Ana Felícia Guedes Trindade

O concurso “Poemas no ônibus” realizado pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre desde 1992 é uma tradição que já foi copiada pelo metrô da região da cidade e por outras cidades e estados. Os poemas vencedores, ou selecionados, são publicados em livro e expostos em veículos de transporte coletivo que circulam pela capital, alternadamente com poemas de alguns “famosos” da poesia. Os textos, naturalmente, têm limite de tamanho e de grau de complexidade. Têm predominado, desta forma, um certo leminskianismo, simploriedade, um fraco haicaismo e alguns ecos do último grande nome da poesia gaúcha, Mário Quintana. Eventualmente, algum poema se destaca por sua qualidade e inventividade. É o caso do poema acima, selecionado na 16ª edição do concurso, escrito por Ana Felicia Guedes Trindade.


Ana Felicia Guedes Trindade é professora da Rede Municipal de Porto Alegre e redondezas, trabalhando com Ensino fundamental/médio, e é Doutoranda em Educação, na Linha Pessoa e Educação – PUC-CAPES. Nunca publicou um livro de poemas.


MININOTACRÍTICA

* DO USO DO QUA:

(COM ELE A AUTORA PROMOVE)   “a regeneração das cargas de conteúdo (semântico) cujo princípio de estímulo é o próprio esqueleto fonético da língua, num intercâmbio eletrizante de sentido-som-grafia” tal afirmou H. de Campos sobre K. Scwitters em “A arte no horizonte do provável”.
Aliás, as semelhaças com a obra deste poeta não param por aí: no trecho “vida-ida.........lo-com-emoções” são usados “os vocábulos incrustados uns dentro dos outros, como Scwitters fazia, porém, não visando apenas à sua manipulação pré-racional, mas já a um complexo de sentido desdobrado em sucessivos outros, como fazia James Joyce”. (USO EM MINHAS OBSERVAÇÕES, ATÉ AQUI, SEMPRE O AUXÍLIO DAS PALAVRAS DE HAROLDO DE CAMPOS)
No trecho (ou estrofe, se preferirmos, embora este termo não me agrade) “Amanheço mulher...”, a poeta consegue usar o recurso do estranhamento de que se fala desde Baudelaire, porém alcançando um resultado cubista: o poema vinha em uma sequência que  “deveria”terminar na palavra “bolos”. Para a nossa surpresa, a estrutura prossegue (que comi...) e se transforma em outa, distinta daquilo que o texto fazia com que o leitor esperasse. O uso parco, ponderado, que é feito da pontuação também gera um excelente efeito cubista na relação entre vocábulos e “versos”(seria, p.ex., Amanheço mulher  ou Amanheço,  mulher de quarenta primaveras)
Às vezes, ainda, parece que o poema tende ao surrealismo: combinação de dois vocábulos que nunca apareceram juntos (p.ex., amanheço correnteza), palavras que deveriam ter outras posições em uma estrutura lógica convencional.
Tais características distinguem o poema do simplismo predominante em concursos deste tipo, na internet, nos jornajs, etc. Não me surpreende o fato de termos encontrado um poema que parece ser de uma grande ou, pelo menos, boa poeta, mas sim o fato de encontrarmos selecinado um texto de qualidade muito superior à média dos publicados neste tipo de concurso, que tem seus méritos, que leva a poesia à população trabalhadora, a qual realmente, se tomarmos um ônibus ou metrô em Porto Alegre, poderá ser vista lendo e comentando poesia.





2 comentários:

  1. O Ano Novo, em seu dia primeiro,me presenteou:encontrei o poema Quarenta Margaridas neste blog, com um comentário amorosamente leve e um pequeno estudo teórico fascinantemente compreensível.Com minhas mãos cheias de margaridas e de gratidão,acolho este espaço distinto, que colheu minha poiesis.

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  2. Como não colhê-la, Ana Felícia? O poema é que é ótimo!!

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