Jean Lecomte du Nouy, L’Esclave blanche, 1888 |
QUARENTA MARGARIDAS
Amanheço mulher de quarenta
primaveras e
quarenta invernos tambémde quarenta
passarinhos e
quarenta mil sóis nascepondo, qua de
quatrocentos
amores e qua de quase tudo alegria.
Amanheço mulher de quarenta velinhas ede
tantos e tantos e tantos bolos que comi agora
fiquei doce.
Amanheço mulher de quarenta e quatro
mil sonhos,
cheia de céus e nuvens brancas na
cabeça e de
leituras de mundo e de redes e de rugas e de
águas
e toda florida e estampada qual frevo de
carnaval.
Amanheço mulher de quarenta projetos divinos e
qua de quase toda arco-íris , qua de quase
toda milharal ,
promessa de vida madura , qua de quase laranja
alaranjada de umbigo e cheia de caldo doce de
outono.
Amanheço mulher passageira de uma avenida
vida-ida-vinda-vida-ida-vinda-ida-vinda-advinda-vindaidaida-vida-vivida,
e fico ressuscivivida de tantas locomoções,
lo-com-moções, lo-com-emoções.
Amanheço com quarenta rodas e quarenta trilhos
e quarenta estradas.
Qua de quatro mil viagens e bagagens.Amanheço
com quarenta
veios d’água e qua de quase
embarcação.Amanheço correnteza
levando flores de laranjeira .
Ana Felícia
Guedes Trindade
O concurso “Poemas no ônibus” realizado pela
Prefeitura Municipal de Porto Alegre desde 1992 é uma tradição que já foi
copiada pelo metrô da região da cidade e por outras cidades e estados. Os
poemas vencedores, ou selecionados, são publicados em livro e expostos em
veículos de transporte coletivo que circulam pela capital, alternadamente com
poemas de alguns “famosos” da poesia. Os textos, naturalmente, têm limite de
tamanho e de grau de complexidade. Têm predominado, desta forma, um certo
leminskianismo, simploriedade, um fraco haicaismo e alguns ecos do último
grande nome da poesia gaúcha, Mário Quintana. Eventualmente, algum poema se
destaca por sua qualidade e inventividade. É o caso do poema acima, selecionado
na 16ª edição do concurso, escrito por Ana Felicia Guedes Trindade.
Ana Felicia Guedes Trindade é professora da Rede
Municipal de Porto Alegre e redondezas, trabalhando com Ensino
fundamental/médio, e é Doutoranda em Educação, na Linha Pessoa e Educação –
PUC-CAPES. Nunca publicou um livro de poemas.
MININOTACRÍTICA
*
DO USO DO QUA:
(COM
ELE A AUTORA PROMOVE) “a regeneração
das cargas de conteúdo (semântico) cujo princípio de estímulo é o próprio
esqueleto fonético da língua, num intercâmbio eletrizante de
sentido-som-grafia” tal afirmou H. de Campos sobre K. Scwitters em “A arte no
horizonte do provável”.
Aliás,
as semelhaças com a obra deste poeta não param por aí: no trecho
“vida-ida.........lo-com-emoções” são usados “os vocábulos incrustados uns
dentro dos outros, como Scwitters fazia, porém, não visando apenas à sua
manipulação pré-racional, mas já a um complexo de sentido desdobrado em
sucessivos outros, como fazia James Joyce”. (USO EM MINHAS OBSERVAÇÕES, ATÉ
AQUI, SEMPRE O AUXÍLIO DAS PALAVRAS DE HAROLDO DE CAMPOS)
No
trecho (ou estrofe, se preferirmos, embora este termo não me agrade) “Amanheço
mulher...”, a poeta consegue usar o recurso do estranhamento de que se fala
desde Baudelaire, porém alcançando um resultado cubista: o poema vinha em uma
sequência que “deveria”terminar na
palavra “bolos”. Para a nossa surpresa, a estrutura prossegue (que comi...) e
se transforma em outa, distinta daquilo que o texto fazia com que o leitor
esperasse. O uso parco, ponderado, que é feito da pontuação também gera um
excelente efeito cubista na relação entre vocábulos e “versos”(seria, p.ex., Amanheço
mulher ou Amanheço, mulher de quarenta primaveras)
Às
vezes, ainda, parece que o poema tende ao surrealismo: combinação de dois
vocábulos que nunca apareceram juntos (p.ex., amanheço correnteza), palavras
que deveriam ter outras posições em uma estrutura lógica convencional.
Tais
características distinguem o poema do simplismo predominante em concursos deste
tipo, na internet, nos jornajs, etc. Não me surpreende o fato de termos
encontrado um poema que parece ser de uma grande ou, pelo menos, boa poeta, mas
sim o fato de encontrarmos selecinado um texto de qualidade muito superior à
média dos publicados neste tipo de concurso, que tem seus méritos, que leva a
poesia à população trabalhadora, a qual realmente, se tomarmos um ônibus ou
metrô em Porto Alegre, poderá ser vista lendo e comentando poesia.
O Ano Novo, em seu dia primeiro,me presenteou:encontrei o poema Quarenta Margaridas neste blog, com um comentário amorosamente leve e um pequeno estudo teórico fascinantemente compreensível.Com minhas mãos cheias de margaridas e de gratidão,acolho este espaço distinto, que colheu minha poiesis.
ResponderExcluirComo não colhê-la, Ana Felícia? O poema é que é ótimo!!
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