JOÃO
CABRAL DE MELO NETO: A PERCEPÇÃO DESAUTOMÁTICA &
A PROXIMIDADE COM O
POUNDIMAGISMO
Adrian'dos
Delima
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Joan Miró |
Qualquer um se perguntaria
ao
se deparar com linhas a respeito da poética de João Cabral sobre o
que ainda raios não teria sido comentado sobre a sua obra. Nunca é demais
pensar sobre a obra de João Cabral de Melo Neto, mesmo que tenhamos que
patinar muito sobre o dado para atingir o novo, ao menos
novo para nós. Situado entre os maiores poetas brasileiros do século XX e
de todas as épocas, provavelmente um dos maiores poetas da história da
língua portuguesa, JCMN é, ainda, muito incompreendido e desgostado, não tanto
pela rigidez e dureza da sua linguagem, pois esta está inclusive presente
em um poema tão popular quanto o é "Morte e vida severina", mas pela
complexidade aparente e retratada, na maior parte da sua restante obra, por uma
arte que transformava o meramente sensorial em uma espécie de percepção
mais subjetiva, através de uma indumentária poética concreta.
Um breve olhar sobre sua
inicial obra poética nos mostra que, embora o poeta pernambucano houvesse
trabalhado imagens nos seus aspectos sensíveis desde a primeira obra-livro,
“Pedra do Sono” (1942), também fortemente marcado pelo onirismo surrealista, é
possível dizer, juntamente com um dos mais conhecidos e dedicados estudiosos
da obra do poeta, o filósofo Benedito Nunes, que é somente a partir
de “O Engenheiro” (1945) que as imagens utilizadas por Cabral começam a
compor sistematicamente o que Benedito chamou de “morfologia do
sensível”. O que o filósofo paraense pretendeu afirmar é que, aqui, sem o
abandono das metáforas, as imagens usadas por JCMN passam a designar mais
claramente a formas sensíveis, ou às coisas e suas qualidades sensíveis.
Aprofundando-se no aspecto
construtivo do poema, de acordo como o "espírito novo"
tematizado por Apollinaire, quando este faria um contraponto à
tendência niilista das primeiras vanguardas, JCMN pretendeu chegar a uma
arte funcional, transformando o poema em uma "máquina de
comover", como a "máquina de habitar" de Le Corbusier, se
afastando mais e mais do automatismo psíquico dos surrealistas.
Tratava-se da intenção de
criar um "objeto" que produzisse no leitor "o mesmo estado
poético do poeta", conceito de Paul Valéry, segundo o qual a
poesia seria aquilo que reconduz o homem aos fenômenos. JCMN pretendeu e
conseguiu "presentificar as coisas percebidas", tentando dar aos
sentidos do seu receptor (ou, mais precisamente, à sua imaginação visual) a
sua própria percepção. Este projeto mostra-se claramente nos conhecidíssimos
versos:
"O
engenheiro sonha coisas claras
superfícies, tênis, um copo de água.".
Começa-se a construir, assim,
uma poesia lúcida, que controla racionalmente os efeitos poéticos contra
as interferências dos acaso e da ânsia de expressar, calculando as
sensações a serem produzidas pela sua obra. Ou seja, começa a
empreender-se uma obra poética que visa à "desautomatização da
percepção", na qual o poeta racionaliza "efeitos
condicionantes" (ou re-condicionantes) sobre a psique do seu
receptor.
Temos aqui a preocupação com a
"atenção", tão citada nas diversas teorias sobre a percepção, e
que seria um objetivo constante na obra de JCMN. JC pretendia
"petrificar" sua percepção para "dá-la aos olhos do
leitor". Nisto, o poeta coincidiria com a poesia "dura e seca"
do imagismode língua inglesa e com a ideologia poundiana
do "Make it new", esta também constante no pensamento de
poetas como Brecht, Maiakóvski, Marinetti, O. de Andrade, Marcel Duchamp e,
inclusive, dos surrealistas.
Há muito tempo já não devem
ser surpreendentes, naturalmente, as coincidências entre a poesia de JCMN
e a dos imagistas, levando em consideração que o pernambucano teve contato
direto com a poesia de Amy Lowel (embora esta seja considerada,
geralmente, uma diluidora do imagismo inicial), de Marianne Moore
(poeta a quem Cabral dedicou um poema) e de W.C.Williams, de quem
JC foi o primeiro tradutor para a língua portuguesa - e, se estes dois últimos
não foram exatamente imagistas, não resta dúvidas de que sofreram forte
influência do movimento de Pound. Note-se, na poesia de
JCMN, o quanto ela está voltada para a percepção visual, para o ritmo irregular
ou prosaico como fixador da atenção, para o uso de palavras "sujas de
realidade", que tratam diretamente da "coisa", seja ela
subjetiva ou objetiva, eliminando todo o supérfluo. Note-se como a poesia de JC
tem a preocupação de "fixar as imagens na retina mental do
leitor", à maneira do apregoado no ainda e sempre essencial The ABC of
Reading (1934) de Ezra Pound, e como o pernambucano se utilizou de
processos semelhantes aos dos imagistas para chegar a este objetivo.
Novamente no plano ideológico,
é notável que o poeta Thomas Ernst Hulme, o predecessor imagista de
Pound que mais exerceu influência sobre este e sobre o conjunto do movimento em
um primeiro instante, em uma época em que tinha os interesses quase
totalmente voltados para as artes plásticas, é notável, eu dizia, que
Hulme criticasse nestas uma certa tradição reinante desde a Renascença, e que
ele associava ao romantismo centrado no ego.
JCMN, em seu ensaio sobre a
pintura do amigo Joan Miró (1950), não repudia por completo uma arte que
"pode atingir e revelar um fundo existente no homem por debaixo da crosta de
hábitos sociais adquiridos, onde os surrealistas localizam o mais puro e
pessoal da personalidade", uma arte que podemos identificar ainda com
a auto-expressão romântica. Porém, afirma que os companheiros de Breton,
"entregues ao puro instintivo, foram encontrar, mais intensos, os hábitos
visuais armazenados, a memória.". Se a memória, Mnemosine, fazendo um
pertinente aparte, era a mãe das musas, aqui poderíamos ter argumentos para
afirmar que Cabral desejou, acima de tudo, ser um antipoeta, um "poeta
da plena consciência".
Então, o nosso "antipoeta
da consciência", prossegue seu ensaio afirmando que a pintura dos
surrealistas, formalmente falando, não fez mais que repetir velhas leis fixadas
desde o Renascimento, leis estas que viriam a automatizar a sensibilidade
do espectador (o que, na presente fala, tomo por "percepção"). Como,
da mesma forma, podemos observar que a escrita dos surrealistas jamais
contestou as normas sintáticas simplistas das gramáticas normativas, não
aproximando-se, nem de uma fala real, presente na oralidade, nem das novas
regras morfossintáticas que até mesmo o povo, o "inventa-línguas",
nas palavras de Guimarães Rosa, era e é capaz de criar cotidianamente. Tudo,
para os seguidores de Breton, era uma questão de colocar dentro de uma sintaxe
convencional uma combinação de palavras que nunca estiveram juntas antes.
Assim, quanto ao pintor
catalão – e, ao que parece, ao próprio João Cabral – buscaria uma arte
livre de antigas fórmulas ou leis que moldariam a percepção humana,
atuando à revelia da nossa atenção, não condicionada pelas crenças, hábitos,
etc., adquiridos ou formatados através dos sentidos. Teríamos, assim, uma “arte
viva”, talvez um simples sinônimo de “nova”, segundo João Cabral – o que
está de acordo, programaticamente, com o Make it new de Pound. “Limpar o
olho do visto e a mão do automático”, palavras de Cabral no ensaio sobre o
amigo da Catalunha é, ao que parece um esforço presente na obra, tanto de
Miró quanto de Cabral ou do imagistas. Enquanto Miró buscaria esta “limpeza”,
segundo JCMN, libertando o “ritmo” do equilíbrio renascentista, Cabral e os
imagistas fazem-no libertando a composição do estado de dormência encantatório
provocado por ritmos e rimas “viciadas” das tradições poéticas de suas
respectivas línguas.
Quebrando a expectativa do
ritmo e fixando a atenção na imagem evocada pela imaginação, JCMN, assim
como os imagistas, alcança frear a “fecunda desordem dos estados interiores”,
parafraseando Benedito Nunes, e fazendo do poema uma coisa “sólida e
ordenada”, a “machine a emouvoir” destinada a produzir a “restituição de
um estado poético originário”, aquele de Valéry. Indo mais longe, quem sabe,
João tenha conseguido chegar, mesmo afastado de qualquer intenção encantatória
xamanística, ao que de mais primitivo pode haver no homem, porém
interpretado com lucidez pelos agudos olhos de sua mente.
É interessante observar para
onde a concretude da fala e o visualizável na poesia de Cabral levou a
poesia posterior à sua nova maneira de ver e fazer rever. Nem falemos da
poesia concreta. Amigo de João Cabral e do pintor
Joan Miró, o poeta catalão Joan Brossa do grupo Dau al set, por
exemplo, atribui à proximidade com ambos as mudanças decisivas no seu
trabalho, que passou a ser dominado, desde então, pela poesia
visualizável e pela materialidade das palavras, através de poemas-visuais
e poemas-objetos. E isto tudo, ainda sem considerarmos que
Cabral produziu uma poesia muito mais que simplesmente concreta em um sentido
meramente visual . Sensorial como foi, pode nos fazer sentir, apenas com a
imaginação, na carne, de maneira mais pungente que um Pound talvez pudesse, a
dureza e a frieza de uma faca entrando na carne, como em "Uma faca só
lâmina", de 1955, fincada no público em 56.
*Este artigo é parte de pesquisa feita (e
perdida) junto ao CNPQ, na década de 1990, pela UFRGS.
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ResponderExcluirPode usar o portugues, Manu. Obrigado.
ExcluirNo entanto, perdi o nome do autor da imagem. Se puder, informe.
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