RICHARD SERRARIA: POESIA
EM CANÇÃO E ÍMPAR MISCIGENAÇÃO DE CULTURAS
Ouvir Richard Serraria é mergulhar em uma aventura por
determinados ritmos
e por uma lírica inconfundível
desde os tempos em que era quase somente um compositor e
letrista da banda Bataclã FC já se apropriava de uma poética da
“intercancionalidade” (referências cancionísticas cruzadas), intertextualidade,
mescla de fragmentos de diversos ditos, escritos, cantados, enfim, de falares
diversos
Mas como dizia André Breton, o poeta cresce em meio isolado
e o desenrolar da lírica de Richard representa um
desenvolvimento individual, não do discurso de múltiplas pessoas
A arte poética de Richard sintetiza em sentido micro a
formação da própria linguagem verbal, sendo esta mosaico simbólico
E se a poesia que funciona pode ser testada como canção
assim falava Ezra Pound
estamos
diante de um excelente poeta cujas letras não perderiam nada ou quase nada em
efeito se usassem os suportes papel ou tela eletroeletrônica
E dos tempos de quase somente rapper da Bataclã FC, passando
por um trajeto que inclui o grupo pesquisador-percussivo Alabê Ôni, Richard parte
do que chama de “pop tradicional” (canção tocada com guitarra, baixo elétrico e
bateria) para em sua gravação solo última, a premiada “Mais tambor menos
motor”, ao mesmo “pop” voltar, desta vez permeado pela “tropicalidade”, convite
à dança, conforme conceito de Vitor Ramil
Mas quem viu o último show do músico-poeta sabe que o
formato, a sonoridade e a lírica do seu trabalho ressoam com uma diversidade
bem maior, a linguagem e arte verbal tendo uma abrangência maior que a musical,
embora esta última, de nenhuma forma, seja simplesmente limitada
Em
Vila Brasil, 2008, primeiro disco solo de Richard, direção musical de Angelo Primon, a maioria das canções compostas
em dupla com Marcelo Cougo, ou Marcelo da Redenção, velho parceiro de Bataclã,
Richard propõe uma poética do popular, das cantigas de roda, dos ditos
populares, dos regionalismos, da linguagem da capoeira e das religiões
afro-brasileiras, com o uso ainda discreto do recurso da paranomásia, que iria
se avolumar em outros álbuns do cantautor
“O anel que tu me deste não era vidro/ O amor que tu me
tinhas/ Apenas começou/ Apenas como eu sou” (Jogos de amar)
paranomásia e referências à cantiga de roda infantil
“Ciranda, cirandinha”
“O que fala a boca/ O que salga a
boca [...] O que sai da boca/ O que trago à boca” (Jaqueline NegaDiaba)
“Gigabytes de emoção/[...] Giba bate o coração/ Giba Giba
gigante negão”(Giba Gigante negão)
Há o uso de berimbau, tamborim, bandoneon; e o acordeom
regional sul rio-grandense invade mesmo canções de ritmo afro, ou negro, como o
ativista Richard prefere
No instrumental já predominavam os “cruzamentos [...]
possíveis entre a música popular praticada no RS com elementos da Bacia do
Prata” (palavras de Richard) que o cantautor aprofundaria em “Pampa esquema
novo”, seu segundo disco solo
Em Vila Brasil, ainda, estes cruzamentos já se insinuavam
pelo uso dos ritmos regionais e platinos, além de outros mais “globais”, ou
importados de longe
É Tango, balada pop com violão, bossa, chamamé, ritmos
árabes
São sambas vários, como o “Samba da impermanência”, que já
menciona o ritmo no título
O ritmo do tradicionalismo gaúcho derivado dos países vizinhos
e da miscigenação com a música indígena também aparece no vibrante chamamé “O
pampa e a cidade”, que é acompanhado de vocabulário gaúcho interiorano-pampeano,
e mostra o campo em contraponto à cidade
Imediatamente, o ritmo do candomblé comparece na homenagem a
Giba Giba, “Giba Gigante negão” arranjado num ijexá para vozes e
sopapos, tambores
tradicionais dos negros rio-grandenses, gravados pelo próprio Giba Giba e por Sandro Gravador
Assim, o disco sai de uma canção tipicamente gaúcha para um
toque de tambor afro (ou negro) em canção que fala do sopapo na letra
Giba Giba precursor na revitalização deste instrumento dos
negros rio-grandenses que quase desapareceu no século XX, a Bataclã FC dando
seguimento a tal legado no século XXI
No segundo disco, então, se acentuam os
cruzamentos tri platinos (Rio Grande do
Sul, Argentina e Uruguai)
Surge uma junção de candombe, tango, milonga,
bossa com tango, ijexá, maracatu, suingue
Há um enriquecimento da complexidade rítmica
das canções, facilmente verificável nas percussões
Esse “Pampa esquema novo”, de 2010/11, dá a
Richard o primeiro prêmio que ganhou na carreira solo, por melhor
arranjador, juntamente com Angelo Primon, Açorianos, o mais renomado prêmio das
artes no Rio Grande do Sul, sendo que antes já havia recebido 3 Açorianos com a
Bataclã FC
Não seria
exagero dizer que o disco, que contou com diversas participações especiais,
como a de Zeca Baleiro e com intercâmbios platinos, como com o uruguaio Daniel
Drexler, era merecedor de outros prêmios para o Richard melhor compositor e
melhor letrista, melhor letra de música
Quiçá
prêmios por uma melhor canção, por exemplo, a inovadora “Temporal”, uma balada
cantada em castelhano e tocada ao violão invadida por uma súbita batucada,
candombe beat, embora esta, exceção, não seja criação do nosso artista a letra
A poética do disco voltada para a oralidade, regionalismos,
tradições negras e intertextualidade literária
Por ex.: oralismo usual a estrutura sintática do refrão (já
está no título, “Só se for só”) como o “só” se repetindo
“Só me levante do chão só se for por amor/ Só se for só”
As referências literárias, “Amor de perdição” está repleta
delas, desde o título, denunciam a procedência de Richard como pessoa também
dos meios literatos em contraste com o popular manifesto escancaradamente na
lírica do disco e de toda obra do compositor, que vem de sua vivência, uma
vivência, por vezes, provocada (o artista buscando deliberadamente vivências
para compartilhar)
“Amor de perdição, Isolda e Tristão/ Perto do coração,
grande sertão”
“O apanhador no campo de centeio/ Orgulho e preconceito/ O
vermelho e o negro/ O tempo e o vento”
O uso da função poética da linguagem novamente se pronuncia
através do uso da paranomásia, aproximando-se mesmo da poesia concreta, na
forma
“à flor da pele aflora, amor/ a flor, amor [...] a cor da
pele/ acorda amor/ a cor do amor” (A flor de perto)
“bailadera vai ladeira” (Bailadera)
Sopapo, tamborim, atabaque gaúcho de batuque, tambores de
candombe e diversas percussões, que Richard chama de “percuteria” (mistura de
percussão e bateria, conceito de Mimmo Ferreira) Violões, bandoneon da bacia do Prata, piano, acordeom, instrumentos
de corda brasileiros (viola de 10, viola de cocho e violões), nenhuma guitarra
(para fugir à sonoridade do rock), contrabaixo elétrico
Eis o caudal instrumental de “Pampa esquema novo”, mistura
de MPB com MPP (música popular do pampa)
Chegando ao último disco, “Mais tambor, menos motor”, 2017,
é, como vimos, um retorno de Richard ao “pop tradicional”, porém com muita
originalidade
Afinal, um “pop cabeça”, expressão que se usava há 30 anos
para designar Paulo Leminski
Guitarras, baixo, bateria, efeitos, teclados
O Sopapo, sempre que possível, seria o primeiro instrumento
cujo som seria arranjado, no projeto de Richard, para só depois pensar a
bateria e o baixo, embora nem sempre essa primazia seja perceptível no resultado
“Rap, sopapo, rock, ragamuffin, reggaeton, milonga, suingue,
MPB e MPP (Música Popular do Pampa)” entram no disco mais pop de Richard,
destacadas aqui as palavras que este usa
Eu acrescentaria, ainda, o funk melody, que percebo em “Palavra
gota de sereno”, apesar de poder esta ser considerada uma mescla com o rap
Álbum produzido por Angelo Primon, Lucas Kinoshita e pelo
próprio Richard Serraria
Dessa vez, o trabalho de Richard levou 3 troféus açorianos:
melhor compositor MPB, para o artista, e melhor arranjador e melhor projeto
gráfico, junto com parças, comparsas, concorrendo ainda a melhor disco do ano
Mais uma vez, Richard merecia outros prêmios: um prêmio de
melhor letrista e de melhor canção para o que Richard chamou de “vinheta”
A vinheta, no caso, que considero canção, dá título ao CD e
é brilhante no uso da tecnologia e do sintetizador
Aliás, todo o disco conta com mais uso de teclados vários,
sintetizador e ainda do acordeom
A letra tão admirável quanto minimalista
“Tão inútil como fósforos num dia de chuva / fui buscar a
poesia que poderia ter sido / Cansado de engarrafar silêncios, vim fazer Mais
Tambor Menos Motor”
O disco explora a música popular brasileira e sua herança
negra
junto à música platina com a qual o Rio Grande do Sul tem
uma relação cancionística-musical dialógica
Dialogam no álbum a “Estética do frio”, de Vitor Ramil, e a
tropicalidade, através de seus traços dançantes
Quanto à ars poetica, destaca-se a influência do rap,
palavra ritmada, e a referência ao universo literário que se espalha por
algumas letras,
como a de “Livro do desassossego”, menção
a livro de Fernando Pessoa, ademais de vários outros escritores, sutilmente, e
“Um bonde chamado desejo” referência à famosa peça de teatro
Em “Livro do desassossego” também entra a
“intecancionalidade”, com vestígios claros de Tim Maia na letra, como tem a
própria melodia
O álbum não abandona a paranomásia
“Tem batucada lá fora/ Esse batuque é tu que tu que é tu que
bate aqui dentro” (Livro do desassossego)
Com o direito de atingir quase o modo de construção de um
poema concreto, chegando a apresentar um neologismo (desaguora), como no fado
com toques de samba “Fado para preta flor” E
como já que escreveu o papa brasileiro João Cabral de Melo Neto, há textos tão
compactos que não podem ser lidos no detalhe, mando a letra aí completa
“Desapego, desapreço, desaforo,
desafogo
diz agora se há fogo, diz agora
Desapega, desapressa, desafora,
desafoga
diz agora que é aqui fora, diz
agora
Desacata, desrecata, desterrada
deste nada
diz agora se é cilada, diz agora
Desacato, desrecato, desterrado
deste lado
diz pra mim se estou errado, diz
agora
Diz agora do meu lado, deságuora
esse meu fado
diz agora com cuidado, desabrocha
e diz:
Negra flor, preto amor, negra
flor, preto amor.
Desapego, diz há preço, desaforo,
diz: há fogo!
diz agora se é fogo, diz agora
Desapega, diz há pressa, desafora,
desafoga
diz agora que é aqui fora, diz
agora
Desacata, desrecata, desterrada
deste nada
diz agora se é cilada, diz agora
Desacato, desrecato, desterrado
deste lado
diz a hora com cuidado, diz agora
Diz agora do meu lado, deságuora
esse meu fado
diz agora com cuidado, desabrocha
e diz:
Negra flor, preto amor, negra
flor, preto amor.
Céu em mim só sei ter voo sem fim”
Um belo poema
Richard o
chama “poema para voz”
mas que fica
muito bem num livro
Lembrando à
comunidade lusófona que o prefixo “des”, na maior parte do Brasil, e na canção,
se pronuncia “dis”
“[...] a
palavra “voo”, no tecido canção, soava como um som único, foneticamente também
como verbo “vou”’ (Richard Serraria)
Mas o que será que fica do trabalho cancional solo de
Richard Serraria?
A mescla de ritmos, cantares, falares
Uma poesia única mas pertencente a múltiplas linguagens
Uma grande contribuição para integração do pampa negro,
branco e indígena, com inevitáveis toques de globalização que ultrapassa os
arredores do Prata
Mas a meu ver, sobretudo, fica uma lembrança
para os que ouvem música que foi branquificada ou nasceu de
uma branquificação (ou clareamento)
tipo rock, jazz, bossa nova
Ou mesmo quem curte o funk de Anitta e o axé de Ivete
Sangalo e Cláudia Leite, que é música negra com ícones brancos
“Tem dias que o homem acorda e tem cabelo pixaim” (“Cabelo
Pixaim”, última canção de “Mais tambor menos motor”)
Depois de ouvir os 3 discos de Serraria, esta linha em
especial, vinda de um originalíssimo e excelente músico-poeta, ficou latejando na
minha cabeça
E, para o bem do público de poesia escrita,
tais dotes poéticos são exercidos também em poesia para ser
lida em papel ou meio eletroeletrônico
Richard Serraria nos prepara um livro de poemas para 2020
intitulado “Sopaporiki”
Será uma reunião de orikis, tipo de poema com origem na
Nigéria
Na verdade, promete o poeta, “uma radical forma de criação
poética partindo da poética dos orikis, expressão lírica associada no livro ao
imaginário do Sopapo que assume atributos e a cosmogonia dos 12 orixás da
espiritualidade de matriz africana”
A julgar pelos poemas-canção de Richard, podemos supor que
seus poemas para serem lidos ficarão muito bem no suporte livro de papel ou
digital
Richar Serraria, pseudônimo de Richard Belchior Klipp Burgdurff é licenciado em Letras Português e
respectivas Literaturas pela UFRGS, mesmo local em que concluiu Mestrado
em 2002, analisando O Auto do Frade: poema para vozes de João Cabral de
Melo Neto e DOUTORADO em 2017. Cancionista popular, poeta e músico,
recebeu 5 prêmios Açorianos de Música (principal distinção musical no
estado do RS), por sua atuação junto ao Grupo Cultural Bataclã FC e
ainda como cancionista em carreira individual. Bataclã FC foi escolhido
ainda como Patrono da Feira do Livro de Novo Hamburgo em 2005, em função
do conteúdo poético presente nas canções de Richard Serraria
(identificação artística). Foi professor do Centro Universitário Feevale
em Novo Hamburgo/RS de 2000 até 2008 quando lançou seu primeiro disco
solo, Vila Brasil, em pontos de cultura de Porto Alegre e RS. Em 2010
concluiu a trilha sonora do documenário O Grande Tambor, com apoio do
IPHAN, contando a história do tambor de sopapo (manifestação afro gaúcha
no sul do RS). Em 2011 lançou Pampa Esquema Novo, conteúdo cultural
composto e gravado em Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Pelotas,
Montevidéo e Buenos Aires. Foi escolhido Patrono da Feira do Livro de
Presidente Lucena RS em 2011 em função de seu trabalho com a poesia no
formato canção. Presta assessoria para instituições de ensino visando
implementação de conteúdos de matriz africana nos currículos através de
palestras/shows em que aborda tais assuntos através do universo da
canção e da Literatura, acompanhado de violão e tambor de sopapo. Em
2013 ingressou no Doutorado em Literatura Brasileira da UFRGS e circulou
pelo Brasil todo ao longo de 2013 e 2014 com o grupo Alabê Ôni,
tambores e vozes, levando a cultura negra do RS para o resto do país no
Projeto Sonora Brasil do SESC.Em 2015 circulou por 16 cidades do RS com o
espetáculo Poesia para todo sampler e lançou ainda o disco Bataclã FC
& Mastigadores de Poesia. Em 2016 apresentou em 9 cidades do RS o
painel "Cantos de Trabalho de um Lugar", mostrando cantos de trabalho
praticados ao longo de atividades laborais coletivas. Em 2017 tem
programada circulação nacional da performance Poesia para todo sampler
(MS, BA, ES, RJ, AL).
Fonte da biografia: O Escavador